Fatos Gerais

A Ciência e o Homem

Por José Reis
O tema que me foi proposto pode ser encarado de vários ângulos. O que a ciência tem feito pelo homem é um deles. Outro poderia ser o efeito da ciência sobre as atitudes gerais do próprio homem, desde que passou a raciocinar cientificamente. Outro ainda, o que a ciência poderá ter feito contra o homem, criando meios de destruição física e por vezes abalando conceitos religiosos profundamente entranhados em sua alma. E muitas outras variações poderíamos imaginar.

Procuraremos seguir um caminho, por assim dizer, médio entre as várias trilhas apontadas. Não podemos fugir a uma consideração, que parece até paradoxal, a de que as palavras científico e humano trazem em si uma espécie de oposição, pelo menos para grande número de pessoas. Haveria até uma rivalidade fundamental entre ciência e humanidade. Muitos vêem na ciência um empreendimento essencialmente anti-humano, seja pelo apego ao rigor dos fatos, que não raro parece reduzir o cientista a um indiferente catalogador de fichas e criador de hipóteses destituídas de sentimento; seja pelas aplicações perversas que alguns princípios científicos encontram em mãos políticas; seja ainda pelo velho fosso que se criou entre o que geralmente se chama de humanismo e o que geralmente se chama de ciência.

Mas a oposição entre o humano e o científico, como bem demonstra Bronowski, é historicamente falsa. O humanismo penetrou o nosso mundo, e começou a moldá-lo, no Renascimento, lá pelo século XV. Embora esse Renascimento seja particularmente lembrado por suas relações humanistas, na literatura, nas artes, na arquitetura, teve ele uma segunda face, bem reconhecida hoje pelos especialistas. Naquela época surgiu também o que se chama de Revolução Científica. É o que ensina um eminente historiador, Butterfield. Ao mesmo tempo que se procurava recuperar o conhecimento acumulado na Antigüidade, vinha o impulso para a descoberta de conhecimento novo. O primeiro movimento tratava de cultivar os clássicos e o ideal grego de vida; o segundo, que talvez se pudesse chamar de mais popular, buscava inspiração nos velhos modelos para olhar diretamente a natureza, com os olhos de cada um. É natural que muitas das descobertas assim feitas caíssem no reino do que chamamos de ciência. Então temos, ainda citando Bronowski, Erasmo empanturrado de grego, tentando reconciliar a moralidade cristã com o amor grego pela vida, ao lado de Leonardo da Vinci, sem grego nenhum, ostensivamente fugindo à cultura platônica de Florença, para estudar as coisas como ele as via, desenhando com o rigor que lhe era possível o corpo humano, interpretando-o como lhe permitiam os conhecimentos daquele tempo, e abrindo caminho às obras pioneiras de Versálio, uma das quais publicada em 1543 – o tratado de anatomia humana.

Já naquele tempo, entretanto, as mentalidades empenhadas em cada um desses grandes movimentos se desdenhavam mutuamente. Característica desse desdém é a própria frase de Leonardo quando, ao referir-se aos pintores mais cultos, afirmava que quem pode ir diretamente às fontes não precisa abeberar-se no pote. Por sua vez, pouco antes de publicado o livro anatômico de Vesálio, isto é, em 1540, Giraldi, todo forrado de erudição, lamentava que estivessem perdidos os dias de ouro, quando não havia uma coisa como a ciência na Terra.

Se as duas irmãs, nascidas do mesmo sôpro renovador e do mesmo impulso contra a autoridade, se desentendiam tanto já no nascedouro, é compreensível que o desentendimento aumentasse com o tempo e a ciência acabasse surgindo, aos olhos de muitos, como a negação do humano e do humanismo. Hoje tentamos fechar esse fosso, desde o começo da escola, pois tanto no humanismo quanto na ciência aproveita a inteligência o vasto legado do passado – e o homem é o único ser que reúne e passa adiante a informação que acumula – dele tirando idéias e fórmulas novas.

Houve uma Revolução Humanista, sem dúvida, caracterizada pela rebeldia contra a autoridade e pela convicção de que o homem deve buscar em si a sua própria força. Mas essa Revolução Humanista abrangeu tanto as artes e a literatura quanto a ciência. Nesta, por uma interessante coincidência, duas das obras fundamentais do Renascimento são do mesmo ano 1543 – o tratado de Versálio, descobrindo por assim dizer o corpo humano, e o de Copérnico, tirando esse mesmo homem do centro do universo.

Nada mais humano, entretanto, do que esse ato de rebeldia que tirava o homem do centro do Universo. Porque assim ele mesmo se atribuía a seu lugar, fiel ao seu raciocínio e ao seu espírito, embora aparentemente se rebaixasse, por força de sua consciente humildade, que é sua maior grandeza. Com o passar dos tempos, aparelhando-se melhor, o homem penetrou as profundidades do espaço e foi ver o que existia para além do mundo que lhe haviam ensinado limitadíssimo. Viu as galáxias e compreendeu que seu Universo era muito mais amplo do que parecera e, mais uma vez, foi levado pela ciência à humildade de reconhecer que, girando em torno dela, em verdade residia num pequenino ponto periférico de uma das muitas galáxias que enchem o Universo. Nem sequer a maior delas.

A visão do mundo complicou-se cada vez mais, do ponto de vista científico. E uma longa estrada, em que luzem especialmente Galileu, Copérnico, Newton, Lineu, Lavoiser, Dalton, Mendeleieff, Pasteur, Darwin, Mendel, Freud, J. J. Thomson e Rutherford, Planck e Einstein, cada um dos quais ajuntou soluções novas ou novas maneiras de entender, trouxe-nos até estes dias da biologia molecular, em que os bioquímicos dissecam o código genético. A interpenetração das especialidades tornou-se muito grande, o que acelerou os progressos científicos, fazendo-se enorme e por muitos temida a força da ciência.

Seria falso insistir na condenação da ciência por ser inumana. De seu desenvolvimento resultaram tão grandes progressos materiais e espirituais para a humanidade, que só por uma espécie de esnobismo poderíamos apresentá-la como inimiga do homem, produto dele contra o que de mais elevado ele encerra. As doenças e a fome, vencidas pelo conhecimento científico, são inimigos hoje derrotados em muitos lugares; a diferença entre o índice de vida médio de um cidadão da orgulhosa Roma dos Césares e de um cidadão de hoje, mesmo em países ainda não plenamente desenvolvidos, mostra fulminantemente o papel da ciência preservando o bem da vida, que antes se dizia supremo, sem que todavia se cuidasse de preservá-lo devidamente. As comunicações vão libertando povos e descolonizando o mundo, enquanto os elementos de conforto e informação vão fazendo mais verdadeiro o princípio da igualdade dos homens, do ponto de vista social, embora a biologia proclame a singularidade de cada um deles. Ninguém é igual a ninguém. Não obstante isso, nenhum biólogo consciente lutaria hoje em favor de privilégios para determinadas criaturas humanas por serem pertencentes a grupos, por exemplo, mais homogêneos. A ciência combateu o racismo, e somente a mania de alguns políticos ou fanáticos o defende, com errados ou deturpados argumentos não científicos. Se a psicologia procura interpretar muitas ações humanas em termos de reflexos ou instintos (usada esta palavra em sentido muito largo), e assim interpretando consegue em muitos casos livrar o homem de aflições que é possível esboçar experimentalmente, em camundongos, não se pode esquecer que ela também penetrou o inconsciente e assim iluminou uma porção de caminhos. Do animal ao homem não passa o cientista por um simples mecanismo de extrapolação.

Em todos esses atos, como em todos os atos científicos, sobreleva a rebeldia contra o autoritarismo e a confiança nos próprios métodos. Aquela rebeldia tempera aliás esta confiança, de modo que o cientista se acha sempre inclinado a aceitar novas fórmulas e novas explicações, num eterno substituir das pequenas verdades com que trabalha. Estas duas características jamais poderiam fazer do cientista um ser inumano, pois o antiautoritarismo é reconhecimento de liberdade – condição fundamental à dignidade humana -, e a autoconfiança é o reconhecimento de que o homem, pela aplicação de seu próprio raciocínio à arte de indagar a Natureza, é efetivamente um ser superior, dotado de faculdades críticas e aptidões que o distinguem fundamentalmente dos animais, tudo isso sem embargo de admitir haja ele resultado de um lento processo evolutivo e constituir, mesmo, um plano acima da própria biosfera.

Acha-se o homem hoje provido de uma armadura científica que lhe poderá permitir até resistir a algumas das forças evolutivas que explicam o malôgro de outras espécies humanas no correr dos tempos antiquíssimos. É ele capaz de modificar radicalmente o seu ambiente e, embora reconhecendo na sobrevivência dos mais aptos uma força que atuou livremente na seleção natural, pode agora cuidar dos menos aptos com a precisão científica necessária para assegurar à vida humana uma posição de dignidade que ela nunca teve, efetivamente, em outros tempos. Cite-se o que se sabe hoje sobre os defeitos e as moléstias hereditárias e a preocupação de usar esses conhecimentos, não para eliminar ou relegar a plano inferior os por assim dizer mal nascidos, mas, pelo contrário, detetá-los o mais cedo possível, a fim de reabilitá-los ou impedir que se invalidem, e ter-se-á o verdadeiro caminho da ciência, a verdadeira posição do cientista no mundo de hoje, uma posição nada espartana.

A análise da mente humana, pelos psicólogos, veio dar-nos meios para distinguir em cada pessoa vários traços de inteligência e personalidade que servem, não apenas para tratar eventuais desajustamentos psíquicos, ou sociais, mas também e principalmente para revelar o que cada qual tem de mais característico, de modo que o potencial humano possa ser aproveitado da melhor maneira. Por esses caminhos a ciência, que aceita a igualdade jurídica e moral de todos os seres humanos, usa a diversidade de seus caracteres para que a educação humana não seja um processo de massificação, mas de individualização e respeito à personalidade.

A estes fatos muito claros sobre a utilização reiterada da ciência para o bem da espécie humana oporão alguns os processos que, baseados em princípios da ciência, se têm feito na arte da guerra, culminando com as bombas atômicas. Ninguém mais do que os cientistas, no mundo atual, tem tido consciência da possibilidade do mau uso de suas descobertas. Exemplificam-no as Conferências Pugwash. O Boletim dos Cientistas Atômicos tem muito menos de atômico, no sentido hoje comum da palavra, para designar a força terrível, do que de profundamente humano na discussão dos problemas de responsabilidade política e moral dos cientistas.

É certo que durante muito tempo alguns grupos de cientistas cultivaram uma pôse toda especial, que contribuía para que aos olhos do público eles parecessem mesmo os super-homens das histórias em quadrinhos. Isolados quase da comunidade, mal participavam de seus problemas. Atitude falsa, que ninguém mais aceita hoje, quando os muros das universidades foram quebrados para que elas se tornassem, por assim dizer, a fábrica do bem-estar público.

Não quer isso dizer que o cientista que investiga princípios, ou fenômenos restritos, cuja aplicação pareça remota, deva renunciar a essa tarefa, para dedicar-se apenas ao estudo daquilo que se torna premente. Esta seria, para repetir uma vez mais Artur Neiva, uma ciência de acampamento. Necessária até certo ponto, ela não deve impedir a outra, que investiga princípios mais gerais. Esta última deu-nos a Relatividade e todos os prodígios modelos da física teórica, tantos dos quais os fatos depois confirmaram, importando lembrar que muitas vezes esses princípios, por assim dizer subterrâneos, agem mais e melhor no progresso geral da ciência e do mundo. O necessário é que mesmo esse cientista que se dedica à ciência chamada pura tenha plena consciência de que o conhecimento novo, que ele descobre e incorpora ao bloco geral de conhecimentos, contribui para um todo que se usa em benefício da humanidade. Assim pensando, o cientista não se despe de seu sentido de responsabilidade política e não queda indiferente ante malbaratamento de sua ciência pelos que se desejam utilizá-las para fins anti-sociais.

Cresce o número de cientistas que assim pensa e sente. E crescerá muito mais na medida em que as universidades forem realmente universidades, isto é, derem aos que nelas se preparam (e também a muitos dos que nelas ensinam) uma visão universal. Algumas grandes escolas de engenharia, por exemplo, não mais entendem que o estudante não receba, dentro dela, ao lado do ensinamento estritamente técnico do engenheiro, uma visão sociológica, filosófica e artística.

A ciência é uma grande força, que tanto pode ser mobilizada para libertar como para oprimir. O que os médicos nazistas fizeram no tempo de Hitler, com suas experiências in anima nobile, mostra que o cientista é um ser humano como qualquer outro, sujeito a ambições pessoais e a subserviências indefensáveis. Pode vender-se por um laboratório, como a criança se deixa atrair por um brinquedo. A escola pode contornar esse mal, e desde o começo, dando a cada pessoa a plena noção de sua dignidade e do papel que a ciência pode ter em preservar essa dignidade.

Contra o autoritarismo, a ciência, que exige e aceita como prática normal de sua ação a liberdade de pensamento, a discussão desimpedida, a contestação, o reconhecimento do erro e a certeza de que tudo o que nela se faz são meras aproximações de uma verdade que ninguém pode sustar, a ciência, repito, é profundamente liberal. É uma escola de homens liberais, onde a hierarquia administrativa não implica necessariamente a hierarquia das idéias.

Todos os ramos da ciência, até mesmo os mais distanciados aparentemente do humano, concorrem para a plena realização das possibilidades que existem na natureza humana. É preciso que não esqueçamos isso. E é sobretudo preciso que não esqueçamos a força libertadora que a ciência exerce. Ela pode libertar países, garantindo a soberania mesmo dos aparentemente fracos e pequenos, como é o caso de Israel. Ela liberta o espírito do homem, vencendo as barreiras que o contêm e entravam. Ela, buscando meios de distinguir as capacidades humanas, consegue meios de detetar precocemente não apenas os espíritos mais inteligentes mas também os mais criadores, de modo que fique assegurada à humanidade a máxima utilização das capacidades intelectuais, daquilo que o homem tem de mais alto, do que de mais elevado existe na Criação.

A ciência aperfeiçoa o homem, ensinando-lhe humildade. O ideal é que todos os cientistas sejam assim humildes. Os verdadeiros cientistas o são e criam em torno de si o ambiente de compreensão. Os cientistas ainda meio curados apenas, ou meio cozidos, ou os cientistas que não são propriamente cientistas, mas técnicos da ciência, é que mantêm dentro de si a ilusão de que tudo sabem e tudo explicam e tudo podem. Nesse grupo formado pela mediocridade é que geralmente se manifestam os gestos de hostilidade, seja em relação às humanidades, sejam em relação à religião, com a qual o verdadeiro cientista pode conviver e na qual pode refugiar-se como ser humano ciente de que jamais saberá tudo a respeito de si mesmo ou da natureza. O mundo atual mostra-nos aliás uma tendência mística entre os grandes cientistas, vários dos quais periodicamente se reúnem para discutir problemas da maior profundidade com filósofos e sacerdotes.

Há finalmente um aspecto da ciência que dissipa, ou deve dissipar, toda errada idéia que se faça do cientista, como um ser robotizado, que na matemática e nas minúcias da estrutura da matéria e da vida se banqueteia com a indiferença de quem se acha animado, tão-somente, pelo interesse de colher resultados imparciais e tirar conclusões estritamente lógicas. Esse aspecto é o próprio ato da criação científica, que se é depois objeto de verificações e controles rigorosíssimos, nasce carregado de emoções, é quase um ato sentimental ou estético. Que diferença entre métodos científico segundo os livros elementares, que pretendem ensinar a produzir ciência, e o processo como de fato acontece, feito de imaginação, de inspiração, de arroubo, de sonho!

Se assim nasce a ciência, carregada de sentimento e emoção, se assim é que se arquitetam as grandes idéias e as grandes teorias, por que não há de ser humana a ciência, tão marcadamente marcada pelas qualidades mais altas e características do ser humano?

Não sei se disse o que os meus caros ouvintes esperavam ouvir. Mas disse o que sinto, não o que sinto para dizer, mas o que digo porque sinto.

Retirado de: Reis, José. Educação é Investimento. São Paulo, IBRASA, 1968.

Fonte:
http://www.geocities.com/revista_espiral/moreb.htm